O Xarpi e o Funk
Em 12 de dezembro de 2014 eu procurava o CD que a equipe Chatubão Digital havia lançado na rede domingo, 26 de julho de 2009: o Níver do FB. Acabei por achar no Fotolog uma foto postada no dia seguinte.
A legenda dizia:
Essa folha aí rolou no baile da Chatuba deste último sábado. Cick e eu fomos ao baile que estava mídia máxima. O burburim rolou solto. Fiquei no camarote 5*, com a presença dos amigos Cick, Runk, Bola, Tas, Tokaya, Kel, Banjo, Ufo, Avana e outros. Foi sucessagem até de manhã.
Uma amiga — Júnia Morais — identificou, acima à direita, a assinatura de Kel VR (Vício Rebelde). Procurei-a no Facebook. Ela não aceitou minha solicitação e não respondeu minha mensagem. A ideia de conhecer os pixadores da Chatuba começou a esvanecer-se lentamente. A memória dos sonhos costuma fugir entre o despertar e o café da manhã. Já meu desejo esteve sempre pronto a reavivar-se. Às 22:52 de domingo, 10 de julho de 2016, escrevi de novo. Na madrugada de segunda-feira, 11 de julho de 2016, ela começou a falar comigo.
— Embora o perfil Kel VR já não exista no Fotolog, você comentou a postagem no mesmo dia: “o baile foi loko memo”. Que recordações você guarda?
— Um baile lotadão. O mais comentado do momento. Era aniversário do dono. Lembro muito tiro pro alto. Uma noite longa entre amigos no camarote da 5*. Fartura de bebidas e drogas até o amanhecer.
— Você me disse que o funk fez grande parte de sua adolescência. Que papel ele representou ou representa em sua vida?
— Fui uma adolescente rebelde que começou a ouvir funk nova. O funk proibido era a sensação. Moradora da zona sul carioca, comecei a frequentar bailes de favela com quatorze anos. Conheci lugares que jamais conheceria não fosse o funk. Frequentei bailes de todos os cantos da cidade. O funk é uma cultura de rua que retrata uma geração mais livre e rebelde. Contra o sistema. Ele é democrático. Quebrou preconceitos. Me mostrou realidades diferentes.
— Você costumava frequentar os bailes da Chatuba?
— Sim. Dentre todos os bailes, o da Chatuba foi dos melhores, sem sombra de dúvida. A estrutura o diferenciava. O espaço era grande e plano. Havia várias barraquinhas — os camarotes. Eu ficava numa com os amigos. Era dos poucos que eu conseguia curtir até de manhã. Ir embora com o sol na cabeça.
— Havia um grupo de pixadores que frequentava o baile da Chatuba ou outros bailes regularmente? Como era o convívio entre eles e os demais funkeiros?
— A maioria dos pixadores era frequentadora assídua de bailes. Naquela época os pixadores eram funkeiros. Muitos eram moradores da Penha ou cria de outras favelas. O convívio era de igual para igual: tribos similares. Nesse baile rolou uma típica reunião de xarpi. Vários integrantes da minha sigla, a 5*, moravam na área. A gente se reunia, fazia nosso núcleo no baile, e sempre apareciam amigos ou admiradores. Qualquer baile que fosse, eu sabia que encontraria um pixador.
— Você se recorda das apresentações de MCs e DJs naquela madrugada? Em particular, da performance do MC Smith em “Vida bandida”?
— Infelizmente não. Gosto do som do Smith, mas naquela época a gente ia pro baile pra ficar doidão. Eu não parava em frente ao palco. A gente ia pra curtir o evento em si, mais que pra ver um show. Dessa música, lembro vagamente. Não era o tipo de funk que eu sabia de cor, como os que comecei a ouvir aos treze. Em 2009 já era maior de idade. Tinha vinte e um anos. Não me marcou.
— Quais eram e quais são suas preferências no funk?
— Já curti todos os estilos. Desde os das antigas, com letras lindas de amor, cantados por Claudinho e Buchecha, MC Marcinho, Suel e Amaro, que eram da minha área, Catete, e os clássicos de consciência, com mensagens — “Rap do Silva”, “Rap da Felicidade”, “Rap do Bob Marley” —, até as montagens de bailes de briga, de uma geração um pouco anterior à minha, e os proibidões. O funk já não é minha preferência. Não é o tipo de som que escuto em casa; mas pra curtição, a depender da circunstância, ouço putaria. Também os pops como Anitta e Ludmilla, e até alguns paulistas de ostentação: Guimê.
— De acordo com a matéria de William Helal Filho, de 16 de agosto de 2011, você começou a produzir a festa Xarpi em 2010; e quando a festa engrenou, largou o xarpi. Sua adesão ao hip hop significou também um abandono do funk? Ou como funk e hip hop conviveram ou convivem em sua vida?
— Larguei o xarpi na prática, mas ele não saiu de mim. O funk a mesma coisa. Parei de pixar muros, parei de frequentar bailes, mas continuo a admirar essas culturas. Aconteceu sim uma transição na minha vida, do funk ao rap. O rap expandiu minha cabeça. O funk então só falava em crime. O rap tem a mesma essência, mas abrange tudo de forma diferente. São vertentes musicais da mesma origem. Ambos vieram da periferia. Acho o rap mais livre musicalmente e mais expansivo em alguns termos. Hoje tem playboy que canta rap e vive disso. Inclusive faz sucesso entre funkeiros. Aconteceu um boom no mundo do hip hop. Existem atualmente grupos de rap de condições favorecidas. Não conheço playboy que tenha virado MC de funk. O funk ainda é cravado nas favelas, das quais é manifestação original. Agora no Rio o funk fala de sexo. O rap tem falado de tudo. O rap tem se desprendido mais e mais de rótulos e da obrigação de passar mensagens sociais, como Racionais e MV Bill faziam. O rap está num momento de misturar tudo. Tem MCs com discursos filosóficos, outros românticos, outros que cantam o estilo de vida jovem, e outros ainda de superação, de crime, por aí afora. As influências musicais são as mais diversas. Os instrumentais são mais ricos. Beats com samples de jazz. Hoje restam poucos bailes de favela devido às UPPs. Meu contato com o funk na noite é em eventos fechados ou em grandes eventos ocasionais, como o Rio Parada Funk. Quanto ao rap, além de produzir a festa Xarpi, estou sempre nos shows e acompanho a cena. Respiro isso.
— Como você vê o funk, o xarpi e o hip hop hoje?
— Submundos em desenvolvimento, cada vez mais reconhecidos e estudados. A voz da juventude. Arte urbana. O funk é uma preciosidade brasileira, o que há de mais autêntico dos jovens de comunidades. É uma vertente que vem se reciclando muito. O auge do momento é putaria e ostentação. Mas existem MCs que se encaminham pra musica pop — um mercado rico. Ele ganhou espaço na mídia, sempre invade as TVs. Admiro a proporção que tomou. Já o hip hop é o estilo musical mais ouvido mundialmente. No Brasil ainda está longe de ser o primeiro, mas se encaminha pra isso. É um mercado que só vem crescendo.
— O proibidão seria o xarpi musical? Você teria músicas ou artistas preferidos nesse subgênero?
— Sim, o proibidão é transgressor tal qual a pixação. É liberdade de expressão de uma juventude que se sente oprimida na sociedade e quer sobretudo se divertir e ser reconhecida. Além do que o xarpi nada mais é que graffiti em sua forma mais crua. É mais original e sujo. É o preto e branco. O funk proibidão é isso. Rimas pesadas sobre batidões, que mandam a realidade na cara. Vocabulário de favela sem papas na língua. Não é coloridinho como um funk do Naldo. O xarpi e o proibidão são amados e odiados pelos mesmos motivos. Os dois são julgados pela sociedade e dificilmente compreendidos. No meu auge dos bailes eu curtia Menor do Chapa, Sabrina, Frank, Tikão, Menor da Provi, G3 e outros. Acho que o nome do momento seja TH.
MC Tikão e Kel Pastore no Rio Parada Funk, 26 de junho de 2016.
FOTO: Baile da equipe Chatubão Digital na Quadra da Chatuba, Complexo da Penha, Zona Norte, Rio de Janeiro, entre 2005 e 2009. © Vincent Rosenblatt.