Do orgulho negro ao orgulho de cria
Entrevista com Ann-Marie Nicholson, Gerente de Comunicações do Schomburg Center for Research in Black Culture da Biblioteca Pública de Nova York, 31 de maio de 2013.
Ann-Marie Nicholson: — Por que a soul music negra norte-americana e o movimento Black Power nos Estados Unidos tiveram o impacto que tiveram nos músicos afro-brasileiros?
Carlos Palombini: — O sentido de orgulho negro inspirado pelo soul entre músicos brasileiros foi liberador em relação à história e à historiografia do samba, que haviam disciplinado suas vidas através da ideologia da integração subalterna. Por “história” entendo as formas como o samba tornou-se permissível, lucrativo, aceitável, as formas como foi polido para transpor barreiras de classe, a ponto de tornar-se uma das figuras mais elaboradas — se não a mais elaborada — da unidade nacional. Com “historiografia” refiro-me às contribuições fornecidas a tal ordem de coisas por quem narra esses eventos, ao formular ou reafirmar uma história mítica, diluidora de aspectos potencialmente ameaçadores da luta de classes e culturas. A estética soul personificou a liberdade num tempo em que direitos fundamentais eram sistematicamente substituídos por truculenta retidão burguesa, e como todas as classes estavam sujeitas a essa truculência, a personificação foi amplamente legível.
Ann-Marie Nicholson: — Como a música soul ajudou a definir aquela geração, não apenas de músicos, mas também de pessoas? O que você identificaria como legados positivos daquele movimento?
Carlos Palombini: — Na primeira metade da década, músicos negros que exibiram sua negritude no palco — talvez sem o saber, no interesse de um regime que desejava projetar imagens de criatividade incontida — tiveram suas carreiras e vidas destroçadas: Toni Tornado, Erlon Chaves, Wilson Simonal. Do início ao fim da década, todo o tipo de artista consolidado enegreceu sem grandes problemas: Elis Regina, Marcos Valle, Roberto Carlos, Caetano Veloso e inúmeros outros. Músicos negros cujo africanismo soava menos ameaçador reforçaram os tons escuros: Jorge Ben, Gilberto Gil. Os anos 1970 colocaram sob os refletores conjuntos instrumentais não muito diferentes daqueles que, ignorados pela história, há décadas misturavam tradições afro-brasileiras e afro-americanas: Dom Salvador e Abolição, União Black, Banda Black Rio. Uma geração de cancionistas compôs, cantou e gravou soul brasileiro: Hyldon, Cassiano, Bebeto,1 Carlos Dafé, Tim Maia. Talvez mais importante, jovens de favelas e áreas da classe operária começaram a se reunir aos milhares para dançar ao som de rhythm and blues afro-americano tocado por DJs, e assim prepararam terreno para a ascensão do funk carioca e da onda atual de orgulho da favela.
Como Bryan McCann afirma, em retrospecto: “as raridades do apogeu do soul, os mais curiosos desdobramentos de um fenômeno curioso — trabalhos como o Racional de Tim Maia — são procurados e valorizados como chaves para entender um Brasil diferente, um Brasil cujos contornos e mistérios mal se avistaram antes que desaparecesse.”2
Ann-Marie Nicholson: — Por que tantos acharam a música soul ameaçadora?
Carlos Palombini: — A ideologia da miscigenação racial vigorava desde os anos 1930, a tal ponto que afirmações de negritude — e de negritude norte-americana em particular — eram consideradas antibrasileiras. Ao desafiar ideias tão enraizadas, o Black Rio passou a ser percebido como iniciador de um racismo do qual até então teríamos sido poupados, e a ameaçar a identidade brasileira com um subproduto da “indústria cultural” espuriamente norte-americano. Além disso, tudo aconteceu sob um regime que dependia tanto da política externa norte-americana quanto da retórica nacionalista — para completar, num momento em que aquela política estava prestes a mudar, e esta retórica, prestes a tornar-se dificilmente sustentável devido à emergência do mercado mundial globalizado.
Ann-Marie Nicholson: — O hip-hop, creio, é o que mais se aproxima da soul music em seu alcance global, especialmente no Brasil. Você acredita que a mesma consciência racial exista hoje no hip-hop?
Carlos Palombini: — Quando se fala em “hip-hop brasileiro”, é necessário levar em conta que o termo “hip-hop” tem um sentido bastante restrito aqui. Em termos gerais, apenas os raps que retratam a chamada “realidade da vida” nas periferias sub-urbanizadas, e ademais o fazem do ponto de vista de alguém que diz o que é o que, se qualificam como hip-hop. O funk carioca é um filho tão legítimo do hip-hop afro-americano quanto o hip-hop brasileiro, se não mais legítimo, na medida em que sua história está mais bem — embora ainda insuficientemente — documentada. Performativo, plurívoco, amoral, humorado e imbuído de Catolicismo, o significado do funk carioca não pode ser entendido fora do contexto dos bailes de favela, onde a maioria dos pesquisadores não está disposta a aventurar-se.
A ideia de “raça” no Brasil está ligada menos à ancestralidade que à cor da pele e ao poder aquisitivo, e embora seja verdade que sempre será difícil para os tons mais escuros passar por “branco”, os mais claros serão “negros” ou “brancos” de acordo com o endereço, o traje, os meios de transporte etc. Sem minimizar o racismo brasileiro, a luta contra esse racismo foi assumida não só por organizações negras, mas também pelo governo central, em certa medida devido a pressões externas. Questões de raça estão presentes nos discursos performativo e verbal tanto do hip-hop quanto do funk carioca, mas tendem a aparecer sob o aspecto da discriminação contra o favelado. Essa discriminação chega a patamares de violência iguais àqueles que poucos sofreram sob a ditadura. Ela inclui letalidade policial generalizada, remoções ilegais, legislação inconstitucional sobre os bailes funk, coerção, supressão da palavra “favela” do Google Maps, execução ritual de rappers por esquadrões policiais, tortura, sequestro e leilão de cidadãos por soldados em missões de “ocupação” do solo pátrio, e até mesmo o uso indiscriminado das Forças Armadas contra moradores de comunidades. Chegamos portanto a uma situação inimaginável até há poucos anos: a presidente que foi ela mesma torturada pelas Forças Armadas hoje as comanda contra os grupos mais vulneráveis de seus concidadãos, entre os quais se encontra a vasta maioria de funkeiros e hip-hoppers. Pior, como essas políticas são populares, continuarão a ser implementadas na corrida para as eleições, a não ser que a pressão internacional aumente.
1 O nome de Bebeto tem ficado fora da literatura, mas está vivo para seu público, como lembra o compositor Thiago dos Santos, cuja colaboração agradeço.
2 Bryan McCann, “Black Pau: Uncovering the History of Brazilian Soul”, Journal of Popular Music Studies, 14, 2002, 35.
FOTO: Montando as caixas de som, Equipe Chatubão Digital, Campo da Ordem, Vila Cruzeiro, Complexo da Penha, Rio de Janeiro, sexta-feira, 2 de abril de 2010. © Vincent Rosenblatt / Agência Olhares