MC G3 (1982–2018)
O MC G3, da Cidade Alta, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi morto aos 36 anos de idade em sua residência na rua 14 de Julho, na Vila São Luís, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, na madrugada de quarta-feira, dia 15 de agosto de 2018. A notícia, dada no início da noite com calculado suspense por um programa de sensacionalismo criminal, provocou uma onda de manifestações entre DJs, MCs, empresários e fãs: os MCs Cidinho, Mascote, Sabrina, Deise Loira, Gil do Andaraí, Orelha, Tikão, Alexandre Fabuloso, Ricardo, Juninho da 10, Copinho, Rodson, Katia, Bobô e Kauan, os DJs Zebra e Júnior da Providência, e muitos outros—aqueles que o inspiraram ou a quem ele inspirou, aqueles com quem dividiu os palcos e os bailes, seus fãs—manifestavam gratidão, amizade, tristeza e revolta.
G3, “O Terrível” (mais tarde, “O General”), nasceu em 3 de agosto de 1982 na favela de Vigário Geral e começou a cantar e compor aos 8 anos de idade. Depois de adotar o nome MC PC, ele assumiu a identidade pela qual se tornaria conhecido, uma homenagem ao grupo de roque cristão Oficina G3. O MC G3 despontou no início do século XXI como um dos grandes nomes da segunda leva do proibidão carioca, na esteira dos trabalhos de Cidinho e Doca, Willian e Duda, Galo, Mascote, Sapão, Catra, Marquinho Pá-Pum e Chá do Borel. Na Cidade de Deus, o funk se reinventava a partir do tamborzão e conhecia sua segunda onda de popularidade na mídia: o consciente cedia lugar à putaria e ao proibidão enquanto os CDs substituíam as fitas cassete, antes de serem trocados pelo YouTube, que eventualmente traria ao subgênero proibido uma audiência na casa da dezena de milhões.
Com o inconfundível “A” rasgado, que ele incorporou gradualmente, G3 deu voz ao clássico “Tu vai tomar de G3”, da coletânea Proibidão vol. 17: parte 2 (2002) e a paródias como aquela em que Caetano Veloso, Alcione, Zeca Pagodinho, Leonardo, Vavá, Martinho da Vila e o padre Marcelo Rossi cantam seu apreço pela cocaína. Em 2003 o CD Proibidão Mangueira reservou-lhe duas faixas e, em 2005, aos 23 anos, ele lançou um CD individual com mais dois de seus sucessos, o “Cheiro de Uê queimado” e “Beira-Mar é Beira-Mar”.
No mesmo ano, G3 foi revelado para um público que não frequentava o circuito dos bailes ao executar “Quem nasceu, nasceu” na abertura do documentário de Denise Garcia, Sou feia mas tô na moda. Denise rememora:
Encontrei-o em 2004, no galpão da Furacão 2000. Tinha ido entrevistar a Gaiola das Popozudas e o MC Frank. Para minha surpresa, G3 estava lá naquela tarde. Perguntei se gostaria de participar do filme cantando, a cappella, “Quem nasceu, nasceu”, uma de minhas músicas preferidas. A resposta foi um belo “sim” e o olhar generoso de quem diz: “Quer que eu cante agora?” Pensei: “Isso não é para qualquer músico, não posso perder a oportunidade.” Olhei para aquele galpão imenso ao redor e vi que a equipe havia separado, num canto, para transporte, caixas de som enormes. Perguntei se ele achava uma boa ideia sentar em frente às caixas e cantar. Posicionei a câmera e ele lá se foi, seguro, com uma voz impressionante, firme, os olhos diretos, a mandar um recado para quem quisesse ver e ouvir. Ao final, me olhou: “Tá legal?” Mantive o “tá legal” na cena e usei-o na abertura do filme. Porque nada poderia simbolizar melhor o funk da época que o talento daquele jovem. (Berlim, 25 ago. 2018)
No filme, ele contou fazer então cerca de nove shows por semana e receber 400 reais por apresentação no Rio e de 2 mil a 2 mil e 500 em outros estados. E acrescentou: “É do tráfico quem quer, se envolve no tráfico quem quer; canta quem quer, mostra a cultura quem quer.” Quando a diretora montava a película, G3 a foi procurar e, com lágrimas nos olhos, pediu-lhe que retirasse os proibidões do documentário. Em 2006 ele teve um dueto com Mr Catra, “Cabelo voa”, incluído na coletânea alemã Rio Baile Funk: More Favela Booty Beats, e, em 26 de maio, estampou a capa do jornal Meia Hora, ao lado de Colibri, Sabrina, Frank, Duda, Catra, Menor do Chapa, Menor da Provi, Doca, Cidinho, Tan, Cula, Sapão e Mascote, com a chamada “Reis do funk na mira da polícia”.
Como nas inúmeras mortes não explicadas de funkeiros, teorias não tardaram a aparecer. Os executores, menores de idade, foram instruídos, por mensagens de WhatsApp, a roubarem apenas joias, um videogame e a chave do carro; e a matá-lo e transmitir imagens da execução. Eles são do Morro do Dendê, favela gerida pelo Terceiro Comando, facção inimiga do Comando Vermelho, cujos proibidões G3 cantava. Segundo um amigo do cantor, ao tomar a Cidade Alta, em novembro de 2016, o Terceiro Comando expulsou-o da comunidade e tomou posse de seus bens imóveis. Na manhã seguinte ao assassinato, o portal G1 divulgou que a polícia investigava “se suspeitos entraram na casa do MC se passando por garotos de programa”. Para a família, eles foram contratar apresentações.
Aparte as dificuldades inerentes a uma carreira no proibidão, G3 conviveu com rumores sobre sua sexualidade desde muito cedo em sua trajetória artística. É difícil imaginar em que medida o boato prejudicou seu trabalho, mas, que ele sofria com isso, o mostram suas letras e depoimentos de amigos. O artista foi obrigado a confrontar-se com o segredo público no palco na Roda de Funk em junho de 2016, quando o MC Max, da Vila Cruzeiro, o atacou com rimas pesadamente homofóbicas e expulsou-o do palco que era sua “segunda casa”. O balanço instável entre ficção e realidade, do qual o funk deriva muito de sua potência, foi quebrado. G3 interrompeu a batalha e protestou: “Tu não tá rachando a minha cara, tu tá rachando a cara do funkão”. E saiu de cena: “Eu sou o G3, nada vai mudar na minha vida.”
O “homem com coração de menino” viveu o duplo prazer de escapar à mira da polícia e da boataria enquanto se notabilizava no mais masculino dos campos musicais. Na crise do pós-UPP, quando outros artistas passaram a experimentar hibridações com o consciente, o pop e o rap, G3 chamou para si a companhia de Gil do Andaraí, outro dos grandes de sua geração, e ambos gravaram um consciente tão realista quanto profético: “A lei da favela”, lançado em 23 de abril de 2018, em produção musical do DJ Flavinho Behringer.
A lei da favela é a paz,
Aqui os menor fica forte,
Eu tô cansado de fofoca,
Não pode.Todo o dia as coisas mudam,
Quem tá de fora não vê:
A madrugada é sinistra,
Filho chora e mãe não vê.Vingança não leva além,
Mas ainda chama a volta,
E as mentiras do governo
Deixa nós cheio de revolta.Ajuda saiu do foco
E o ódio tá aí:
É DJ contra DJ
E MC contra MC.E se não for pela paz
Talvez seja pelo amor,
Mas se não tem compaixão,
Já era, o mundo acabou.Menor aperta o gatilho
Sem dó, sem piedade,
E a disputa do ouro
Tá no centro da cidade.E só tá piorando,
Menor:
Vagabundo tá matando
Sem dó.Sem pensar na família
De alguém,
Nego paga com o mal
Só quem pensou em fazer o bem.
Em 31 de julho de 2018, três dias antes de seu trigésimo sexto aniversário, G3 enviou ao grupo de WhatsApp Dinossauros do Funk uma mensagem de voz em tom pausado sobre música incidental: “O mal do ser humano é que ele dá valor às pessoas só depois que elas morrem. O importante é dar valor enquanto está vivo, porque só se vive uma vez. Depois que vai embora não adianta falar que tem saudade; depois que vai embora não adianta falar que gostava; depois que vai embora não adianta falar que era maneiro. Então, mano, dá valor enquanto está vivo, que, depois que morre, só vai restar a lembrança. E essa lembrança é uma coisa que machuca, igual à saudade.”
Na sexta-feira, 17 de agosto, caía uma chuva fina no Cemitério do Irajá quando os MCs Willian e Duda, Mascote, Gil do Andaraí, Smith, Tikão, Katia, Alexandre, Bobô, Mulato e Ricardo se preparavam para sepultar G3. E era a época de ouro do proibidão—uma parte de si mesmos—que eles enterravam com o amigo. A imprensa foi mantida à distância.
No domingo, 19 de agosto, após uma apresentação na festa de vinte e cinco anos da torcida Raça Fla de Brasília, Cidinho, que G3 tanto admirava, sintetizou a reação do mundo funk numa metáfora: “Esse chapéu que eu ganhei, eu pedi esse chapéu, porque esse chapéu tem dono. Só que o dono não está mais vivo de corpo, de matéria. O espírito dele e a voz dele já estão eternizados—do G3. Nem eu nunca vou botar na cabeça esse chapéu: se eu botar esse chapéu um dia, podem reparar que vou estar de olhos azuis.”
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FOTO: Antes do baile Amaréfunk, no Pontilhão, Complexo da Maré, Zona Norte, Rio de Janeiro. © Vincent Rosenblatt.