MC Kevin (1998–2021)

Eu tô vivendo e vendo uma sombra do meu lado, aquele que te inveja, aquele que não acompanha os meus passos. Larguei o crime, bom samaro inteligente, que vê o melhor da vida sempre andando pá frente.

A última[*]

MC Kevin morreu na noite de 16 de maio de 2021. No dia seguinte, na imprensa, a ficha criminal do indivíduo deu vez a panoramas de obra e vida. O Presidente da República ofereceu condolências. Todavia, em “A última”, um de seus últimos trabalhos, o MC contrapõe a si mesmo, “bom samaro inteligente”, um líder falho:

Cadê sua dignidade, velho soldado covarde
Que não foi sujeito homem
E muito menos foi de verdade?

O uso de “samaro”, forma reduzida de “samaritano”, aproxima o MC do mandatário pela sonoridade (“Bom Samaro”/“Bolsonaro”) ao mesmo tempo que os distancia pelo significado, porque “falar que funk é crime, pro governo é concorrente” e ambos se valem do mesmo meio: “Vamos invadir sua casa pelo Whats, pela tela, pode ser, caralho, porra, até falando mal!”

Como chegamos aí?

O “mundo funk” abarca divergências geracionais, estéticas, de produção, circulação e hierarquia. A literatura sobre o gênero divide sua história em quatro períodos: os anos 1980, de formação; os anos 1990, de nacionalização; a primeira década dos anos 2000, de radicalização; e os anos 2010, de reinvenção. Existem três níveis de circulação: um mainstream, associado à mídia corporativa; o underground dos fluxos e bailes de favela; e um mainstreamed,[†] de cujos monopólios digitais Kevin procurava se libertar. A vitalidade do gênero depende de inovações do underground, processadas por um mainstreamed e incorporadas ou não pelo maisntream. Essa engrenagem é impulsionada por artistas geralmente muito jovens e muito pobres em busca de realização.

O desenvolvimento musical do funk carioca não se separa da história de sua repressão pelo Estado. Ao final dos anos 1990, o fechamento de vários bailes em clubes de subúrbio transferiu o epicentro do gênero para as comunidades e, junto com a nova batida, o tamborzão, contribuiu para sua radicalização, manifesta em dois subgêneros: a putaria e o proibidão. CDs domésticos, plataformas P2P, compartilhamento em nuvem, flogs, blogs e redes sociais permitiram a distribuição relativamente independente.

A primeira década do milênio assistiu ao cerceamento dos bailes de comunidade pela implantação de UPPs. Apesar das possibilidades de monetização, o funk no Rio ainda sofre as consequências da perseguição a esse celeiro de carreiras em desenvolvimento e habilidades em formação que são os bailes de favela. A partir de 2010, as atenções se deslocam para São Paulo, onde DJs, compositores e MCs se apropriam do legado carioca, impulsionados por monopólios digitais emergentes, com modos próprios de filtragem, exploração e normatização.

Os últimos trabalhos de Kevin apresentam as inquietações de um jovem criado em tempo de “inclusão pelo consumo” cuja carreira se aproxima de seu apogeu em tempo de pauperização. Sua mãe se preocupava: “Kevin vive na velocidade da luz!” Ele queria parar: “Tô só pedindo um tempo pra minha vida repensar”.

A última”, trap-funk cujos excertos aparecem acima, música e letra do intérprete, tem produção musical dos DJs Luan MPC e Glenner, e foi lançada no canal de YouTube MC Kevin Oficial em primeiro de abril de 2021. A base é uma textura complexa e translúcida que entretece fragmentos de conversas de estúdio, teclado, harpa, baixo, xilofone, efeitos vocais, trompa, chimbal, tiros e um veículo em aceleração. O beat é dado pelo baixo — alternadamente em legato e staccato — a substituir o bumbo, em combinação com rim-shots ao invés de caixa, e com um chimbal nervoso de trap usado de modo intermitente. O ponto melódico repetitivo, típico do trap, é recriado de modo mais discreto, pois integrado à textura, e mais complexo, por consistir em perguntas e respostas. A primeira virada, uma figura ascendente de trompa em staccato, introduz o canto. A segunda consiste em tiros e introduz o beat. Pouco antes da metade da música, o baixo passeia em staccato pela região dos médios graves. Sua segunda visita ali anuncia a coda. À medida que as palavras do canto se desintegram e se diluem nas conversas de estúdio, a textura se desmembra e deixa ouvir, primeiro, apenas a voz de Kevin. Depois de tentar se reconstituir, ouve-se o dedilhado harmônico da harpa em combinação com o xilofone bem como o ponto de perguntas e respostas, tudo envolto nas brumas de um teclado. Mais uma vez, a textura busca se recompor para de novo desintegrar-se, resumida à harpa e à voz de Kevin, que se despede em falsete jocoso. Ela assume então configuração idêntica à da introdução para ligar seu fim a seu começo. As linhas de baixo, xilofone e harpa são melodicamente unificadas pelo motivo de perguntas e respostas do ponto cíclico de teclado.

Servido por esse aparato, Kevin divide, acentua e escande para dar voz às sonoridades e às imagens tanto óbvias quanto surpreendentes da letra: “invadir sua carga” ao invés de “sua casa”; o latrocínio por assassinato da mente e roubo do coração; a analogia entre arma e microfone ou entre ideia e munição; o ataque direto a Bolsonaro; e o caráter jocosamente infantil de sua despedida final. “A última” foi lançada como brincadeira de primeiro de abril.           

MC Kevin Oficial✪ · MC Kevin – A Última (DJ Luan & DJ Glenner) Áudio Oficial.

Eu tô vivendo e vendo uma sombra do meu lado,
Aquele que te inveja, aquele que não acompanha os meus passos.
Larguei o crime, bom samaro inteligente,
Que vê o melhor da vida sempre andando pá frente.

Já que MC é criminoso, vou assassinar sua mente,
Vou roubar seu coração.
Pego o meu oitão, que eu chamo de microfone,
Encho de ideia, a palavra é a munição.

Vou colocar meu colete da Lacoste
Pá me proteger de toda inveja, de todo perreco.
Vou montar uma quadrilha só com MC pesado,
Pode ter certeza que o assalto vai ser sucesso.

Vamo invadir sua carga pelo Whats, pela tela,
Pode ser, caralho, porra, até falando mal!
Eu sei, tem bota preta qui é fã,
Então vai passar a grana, baixa o ritmo, entra na sua conta na PayPal.

E o meu brilho tá brilhando mais que a sua sirene,
O meu carro tá correndo mais que o carro dá.
Falar que funk é crime, pro governo é concorrente,
Saber que o sonho do filho dele é ser um da gente.

E o meu brilho tá brilhando mais que a sua sirene,
O meu carro tá correndo mais que o carro dá.
Falar que funk é crime, pro governo é concorrente,
Saber que o sonho do filho dele é ser um da gente.

Então manda a minha cota pra cá,
Que eu tô cansado de perreco,
Que eu tô cansado de cantar.

Vou dar um tempo, eu posso parar.
Depois eu volto pro funk,
Joga o tapete vermelho pra mim passar.

Eu vou ficar um tempo distante, paz
Na minha vida, que eu tô cansado de inveja.
Eu vou aproveitar pra gastar meus milhão bem longe,
Tô só pedindo um tempo pra minha vida repensar.

É hora do descanso do gigante.

É que justiça, liberdade, tá foda a realidade,
Vê que o mundo tá acabando, não tá com Bolsonaro, só, larga.
Cadê sua dignidade, velho soldado covarde,
Que não foi sujeito homem e muito menos foi de verdade?

É que justiça, liberdade, tá foda a realidade,
Vê que o mundo tá acabando, não tá com Bolsonaro, só, larga.
Cadê sua dignidade, velho soldado covarde,
Que não foi sujeito homem e muito menos foi de verdade?

E o meu brilho tá brilhando mais que a tua sirene,
Meu carro tá correndo mais que o carro dá.
Falar que funk é crime, pro governo é concorrente,
Certeza que o sonho do seu filho é ser um da gente.

Certeza que o sonho do seu filho é ser um da gente.
Igual, igualzinho.
Certeza que o sonho do seu filho é ser um da gente.

Quem acordar, acordou.

Tio, só vou vazar essa música, tá, só vou vazar,
Não vou fazer clip, não vou fazer mais porra nenhuma.
Esquece, véi!

Pode vazar essa aí,
Essa aí é uma das última aí, que eu vou dar um tempo.
Vou dar um tempo, vou ficar quietinho.
Esquece, depois eu volto.

Tchau!
Quem acordar, acordou, quem não acordou…
Esquece!

Bye, bye.

 

[*] Uma versão anterior deste texto saiu na página 2 do “Segundo Caderno” do jornal O Globo, ano XCVI, número 32.065, no sábado, 22 de maio de 2021.

[†] O termo mainstreamed como usado aqui foi proposto por Akane Kanai no verbete “DIY Culture” do livro Keywords in Remix Studies, organizado por Eduardo Navas, Owen Gallagher and xtine burrough, Nova York e Londres, Routledge, 2018, 125–34.

 

FOTO: Caveira da Ilha do Governador, grupo de proto bate-bola, Ilha do Governador, Rio de Janeiro, Carnaval de 2018. © Vincent Rosenblatt.