Mora na filosofia: Putaria é lixo

Em “A nova moral do funk”, a argumentação de Marcia Tiburi gira em torno de um erro semântico. O que ela designa como Proibidão corresponde ao subgênero de funk carioca cuja denominação correta é Putaria. É possível que aquilo de que ela fala nem mesmo exista.

Ludwig Wittgenstein afirma nas Investigações filosóficas que “uma nuvem inteira de filosofia se condensa numa gotinha de gramática”. Em “A nova moral do funk”, Cult 163, novembro de 2011, a argumentação da filósofa Marcia Tiburi gira em torno de um erro semântico. O que ela designa como Proibidão corresponde ao subgênero de funk carioca cuja denominação correta é Putaria. É possível que aquilo de que ela fala nem mesmo exista: da “performance corporal-sonora” descartada, não se dá a conhecer nenhuma música, nenhuma letra, nenhum artista, nenhum evento, plateia nenhuma. Também não se leva em conta a história dessa música, sua teoria, o que ela possa representar para quem a produz, faz circular, consome, vive. Tampouco entra em jogo a relação problemática da música funk carioca com a ideologia. “Há mais coisas no céu e na terra do que sonhadas em tua filosofia”, diz o Príncipe da Dinamarca. Uma delas é a música. Outra, sua literatura. Gérard Genette abre o artigo “Estruturalismo e crítica literária” assim:

Num capítulo já clássico de O pensamento selvagem, Claude Lévi-Strauss caracteriza o pensamento mítico como “uma espécie de bricolagem intelectual”. De fato, é característico da bricolagem exercer sua atividade a partir de conjuntos instrumentais que, ao contrário dos do engenheiro por exemplo, não foram constituídos em vista dessa atividade. A regra da bricolagem é “dar sempre um jeito com o que se tem à mão”, e empregar, numa estrutura nova, resíduos desusados de estruturas antigas, economizando uma fabricação expressa a custo de uma operação dupla de análise (extrair vários elementos de vários conjuntos constituídos) e síntese (constituir, a partir desses elementos heterogêneos, um conjunto novo onde, no limite, nenhum dos elementos reutilizados recuperará sua função original). Essa operação tipicamente “estruturalista”, que compensa certa carência de produção com extrema engenhosidade na distribuição dos restos, é no plano da invenção mitológica, convém lembrar, que o etnólogo a encontra ao estudar as civilizações “primitivas”.¹

A Putaria toma arquétipos sexuais, por definição sexistas, que são representados e reprocessados por DJs, MCs, dançarinos e ouvintes. Mas o sentido da Putaria não está nos arquétipos, e sim nos usos que se faz deles. Ele só pode ser entendido com referência a situações concretas em contextos específicos. A sexualidade mirabolante do funk carioca é uma fantasia, tão mais efetiva quanto mais distante da realidade, quanto mais derivativo e musical o sentido que lhe seja atribuído. Os expletivos e gemidos da Putaria são decompostos, recompostos e repetidos na exploração dos recursos do instrumentário eletrônico, isto é, no exercício daquela engenhosidade na distribuição dos restos da qual depende o sucesso do baile e o estatuto de músico do artista. O que caracteriza a Putaria portanto é o trabalho mental, o exercício da inteligência, as operações do espírito, o cultivo de uma razão sensível. “Nada no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos”, afirma o moto empirista. O que se poderia traduzir por “putaria é cultura”.

O Proibidão é uma arte distinta. Seus meios são austeros, como convém à ética que nele se exprime. Uma voz humana capaz de expressar apaixonadamente a identificação do cantor com aquilo que canta, e de estabelecer uma conexão entre a comunidade e seu canto. Por isso, os MCs do Proibidão são imperecíveis. Seus registros são raros e difíceis: o trágico, o heroico, o épico. E se, na música brasileira, os tons mais graves foram alcançados no convívio do crime, é porque “no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso”, como afirma Guy Debord em A sociedade do espetáculo.

Assim como o Proibidão está circunscrito à ética da favela, à ética do crime e ao elogio da facção que zela por ambas, a nova moral de Marcia Tiburi está circunscrita ao senso comum: funk é lixo. Para dizer isso, ela picota e reprocessa o Adorno descontextualizado de seu remix. Walter Benjamin escreve em Sobre o conceito de história:

A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos.²

No Rio de Janeiro hoje, leis são flexibilizadas e direitos fundamentais suprimidos no interesse do grande capital e seu afluxo. “A nova moral do funk” celebra o aniversário de prisão ilegal dos MCs Frank, Max, Tikão, Dido e Smith. Amalgamando Proibidão e Putaria, Marcia Tiburi contribui para lançar o estigma do crime moral sobre vários indivíduos, mas omite qualquer elemento material, objetivo, de acordo com a estratégia da grande mídia. De nobreza e engenho, não há resquício. Como observa Lily Hirsch:

[…] em última análise, o uso de letras pela acusação revela e contribui para a ambivalência da sociedade quanto ao rap — arte ou não. De fato, a acusação apresenta a letra no tribunal sem o contexto e mesmo sem a música — privando-a assim de sua significância cultural como arte. Ao mesmo tempo, os tribunais de certa forma admitem que o rap seja um reflexo das ações e pensamentos do compositor, de acordo com ideias Românticas da música como arte elevada. Este segundo impulso representa um momento surpreendente no fluxo do legado da estética musical do século dezenove: noções Românticas de música parecem estender-se aqui da música clássica ao rap. Essas considerações terminam por minar qualquer leitura de uma correspondência unívoca entre compositor e composição, e portanto qualquer pensamento, presente ou passado, que sustente tal abordagem.³

Para Marcia Tiburi, a confiança, a coragem, o humor, a astúcia e a firmeza com as quais DJs e MCs ganham a vida são lixo. Ela ganha a sua com filosofia. Isso é Cult. Marcia é luxo. Ela não é lixo.


¹ Gérard Genette, “Structuralisme et critique littéraire”, L’Arc 26 (Lévi-Strauss), Aix-en-Provence, 1965, p. 30, tradução do autor.

² Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, 1940, tradução de Sérgio Paulo Rouanet, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 222–232.

³ Lily Hirsch, “Music and Criminal Law: Rap Lyrics as Evidence of Crime”, Program and Abstracts of Papers Read at the American Musicological Society Seventy-Seventh Anual Meeting, São Francisco, AMS, 2011, p. 154, tradução do autor.

Originalmente publicado no site riobailefunk.net em 12 de dezembro de 2011.

FOTO: Baile do Cantagalo, Rio de Janeiro. © Vincent Rosenblatt / Agência Olhares