The boy from Ititioca: MC Orelha

Ele sabe que o funk não transpõe bem a fronteira de classes. Sente-se pessoalmente discriminado em seu dia a dia e, por essa razão, não grava DVDs. O funk do qual ele gosta não toca no rádio, mas Gustavo Lopes não parece preocupar-se com isso.

No conto de Muniz Sodré, Ititioca é “aquele ermo esquisito […] pra lá de Pendotiba”, “fim do mundo, onde o vento faz a curva”. Da janela do segundo ou do terceiro ônibus, vão “sumindo o asfalto das ruas, os jardins eventuais, a impressão de estabilidade das casas”. Após o ponto final, resta “um bom pedaço a ser vencido a pé”.1

Com 30,7% de sua população na classe economicamente favorecida, como mostra um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas, Niterói é o mais classe A dos municípios brasileiros.2 No Plano Diretor, Pendotiba é uma região de Niterói, e Ititioca, uma subregião de Pendotiba, mas também um bairro da subregião de Ititioca.3 E dos mais pobres: “os condomínios fechados ainda não se difundiram em Ititioca.” Nem devem difundir-se: “o bairro não apresenta atrativos maiores para a classe média.”4

O tupi combina Ybytí (o morro, o monte) e oca (a casa) para formar Ibytioca: “a casa no morro” ou “a gruta”.5 Da casa ou da gruta, sobrou a história. As jaqueiras, as mangueiras, as bergamoteiras e a água potável da nascente do rio Guaxindiba cederam lugar às moscas, aos ratos, aos urubus, ao chorume e ao metano quando, em 1983, a prefeitura transformou o Morro do Céu no inferno de seus habitantes.6 Até então, o papel de lixão fora desempenhado pelo Morro do Bumba. A municipalidade “urbanizou-o”. Mas em 2010 o Bumba fez jus ao nome, desabando num estrondo. Morreram no lixo cinquenta pessoas.

 

 

Gustavo Lopes nasceu em Niterói na sexta-feira, 5 de setembro de 1986. Criou-se na comunidade do Capim Melado, complexo da Ititioca, e estudou no Colégio Estadual Baltazar Bernardino, no bairro Santa Rosa.7 Seu primeiro rap, “Complexo da Travessa”, veio aos 11 anos. O sucesso e a profissionalização, aos 23: “Na faixa de Gaza é assim (Santa Rosa)”, hoje com dez milhões de acessos no Youtube, tornou-o nacionalmente conhecido em 2009.

Pra falar a verdade, eu, tipo assim, eu tenho uma visão diferenciada porque… eu já estive dentro do problema. Vamos… né… “Problema”: Eu já fui preso, eu tenho toda uma visão assim, entendeu? Sendo que, além de tudo isso que eu passei na minha vida, eu tive uma vida social, eu me informei, eu estudei, meu pai me deu educação, entendeu? Então tudo isso ajudou a ser o Orelha.8

“Consideração se tem pra quem age na pureza”, ele canta na gravação que o consagrou, e duvidar da pureza de Orelha não é praxe. O papel do MC Orelha é relatar o cotidiano das comunidades através da música original das favelas. Ele sabe que o funk não transpõe bem a fronteira de classes. Sente-se pessoalmente discriminado em seu dia a dia e, por essa razão, não grava DVDs. O funk do qual ele gosta não toca no rádio, mas Orelha não parece preocupar-se com isso. Divulga seu trabalho através da Internet e da distribuição de CDs. E não tem dificuldade em sustentar sua família — e, indiretamente, a de seu DJ e a de seu produtor — com apresentações ao vivo.

Quem trave contato com a música de Orelha através de suas contas na web talvez adivinhe que ele é virginiano: o cuidado com que se apresenta e nomeia seus arquivos é incomum e atesta o uso hábil do meio. O 4shared guarda o corpo da obra — atualmente, 81 gravações. No SoundClound estão as criações mais recentes. Seu último sucesso, “Segura o garoto”, pode ser descrito como pop dançante.

MC-Orelha_DJ-Gelouko_Segura-o-Garoto_2011

Ôi, ô novinha isso é gostoso!
Empurra, empurra, empurra, empurra, empurra, empurra, empurra, empu…
Ôi, ô novinha isso é gostoso e você sabe disso.

Segura o garoto, segura o garoto,
Ôi não importa se ele for meio torto.

Ai!

Segura o garoto, segura o garoto,
Ôi não importa se ele for meio torto.

Ai!

Nosso bonde é bolado!
Empurra, empurra, empurra, empurra…
Ô novinha isso é gostoso!

Nosso bonde é bolado!
Empurra, empurra, empurra, empurra…
Ô novinha isso é gostoso!

Ôi, ô novinha isso é gostoso!
Empurra, empurra, empurra, empurra, empurra, empurra, empurra, empu…
Ôi, ô novinha isso é gostoso e você sabe disso.

Segura o garoto, segura o garoto,
Ôi não importa se ele for meio torto.

Ai!

Segura o garoto, segura o garoto,
Ôi não importa se ele for meio torto.

Ai!

Nosso bonde é bolado!
Empurra, empurra, empurra, empurra…
Ô novinha isso é gostoso!

Nosso bonde é bolado!
Empurra, empurra, empurra, empurra…
Ô novinha isso é gostoso e você sabe disso.

Segura o garoto, segura o garoto,
Ôi não importa se ele for meio torto.

Ai!

Segura o garoto, segura o garoto,
Ôi não importa se ele for meio torto.

Ai!

A simplicidade engenhosa da produção do DJ Gelouko parece parodiar “The Girl from Ipanema”, com “Ais!” histéricos no lugar dos “Ahs!” frígidos de Astrud Gilberto,9 uma buzina rítmica de dois tons substituindo os melismas de Stan Getz, e o “Dum-tcha-tcha-tum-tugudá-tu-Dum” que reinou nas bases em 2011 tomando o lugar do violão de João Gilberto (que para alguns reina ainda). Mas o pop dançante de Orelha e Gelouko tem marca de origem: o “empurra-empurra” e a voz do MC G3, relíquia do proibidão,10 reconhecível no timbre rasgado do “a” de “bolado”, são citações das festas proibidas.

Quando a house music nascia em Chicago, em 1984, o duo inglês Pet Shop Boys gravou uma canção sobre os equivalentes britânicos dos garotos da Zona Norte e das garotas da Zona Sul, e seus encontros num bar suspeito da Zona Sul, num mundo sem saída. “West End Girls” foi a canção da década 1985–1994.11 Embora a distância entre Ititioca e Ipanema seja maior que aquela entre o East End e o West End londrinos, os garotos de Ititioca e as garotas de Ipanema têm mais chances de se encontrar nas boates da Zona Sul ou nos bailes da Zona Norte que o MC Orelha de figurar ao lado da dupla Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim nas páginas de qualquer jornal. Em termos musicais não há razão para isso. A bossa nova e o funk carioca são manifestações sonoras, por meios radicalmente diferentes, de espaços e tempos limítrofes, mas muito distintos. A garota de Ipanema, cheia de graça, passa na imaginação de um cinquentão solitário e triste dois anos antes do golpe de 1964. O garoto de Ititioca, meio torto, se oferece à novinha vinte e seis anos após o fim da ditadura. Isso é gostoso.

 

MC Orelha, “álbum pessoal”, Facebook do artista, 19 de junho 2011

 


1 Muniz Sodré, “Viagem a Ititioca”, Rio, Rio: contos, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1995, pp. 103–113.

2 Marcelo Côrtes Neri (coord.) e equipe do Centro de Políticas Sociais, Os emergentes dos emergentes: reflexões globais e ações locais para a nova classe média brasileira (The Bright Side of the Poor), Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2011, <www.fgv.br/cps/brics>.

3Plano diretor“, Lei 1157/92 da Prefeitura Municipal de Niterói.

4 “Ititioca”, <www.guianiteroi.com.br/407/ititioca.html>, Guia Niterói, <www.guianiteroi.com.br>.

5 Alexandre P. Leontsinis, O tupi: nossa linguagem ecológica, Santa Cruz, Biblioteca Stassa Leontsinis, 1992, pp. 130 & 166.

6 Declev Reynier Dib-Ferreira e Regina Lucia do Nascimento, “História ambiental do Morro do Céu: a atução dos diversos atores sociais“, monografia de especialização em Educação para Gestão Ambiental, Rio de Janeiro, Faculdade de Educação, UERJ, 2001.

7 Com a alteração dos limites do bairro Santa Rosa, o número 444 da rua Mariz e Barros, onde se localiza o Colégio, passou a fazer parte de Icaraí.

8 Entrevista com o MC Orelha para a Maratona Cultural 2011 do Colégio Estadual Manuel de Abreu, Niterói, <www.youtube.com/watch?v=vLID4liTR7Y>.

9 O “Ah!” de “The Girl from Ipanema”

The Girl from Ipanema

O “Ai!” de “Segura o garoto”

Segura o garoto

10 Ou relikia, isto é, “parte da história” do proibidão.

11 De acordo com a Academia Britânica de Compositores e Letristas, em 2005.

 

FOTO: Baile do Clube Eden, Belford Roxo, Rio de Janeiro. © Vincent Rosenblatt / Agência Olhares